Quando o futebol “causou” uma guerra: El Salvador x Honduras

O esporte é um dos símbolo de transformação de uma sociedade, isso é inegável.

Temos inúmeros episódios de atos relacionados direta ou indiretamente ao esporte que ajudaram nações a reestabelecer sua identidade ou, até mesmo, interrompem conflitos.


A premissa dos Jogos Olímpicos é exatamente essa – mesmo que não totalmente atingido.

O Santos, por exemplo, pode se vangloriar de ter parado uma guerra durante uma de suas excursões internacionais.

No entanto, também sabemos como o esporte pode ser usado por fins políticos para alavancar estruturas de poder e opressão.

Nesse caso, temos o exemplo do que fez o Governo Federal do Brasil se aproveitando do tricampeonato brasileiro na Copa do Mundo em 1970.

Só que, em um episódio sangrento um ano antes, em 1969, o futebol foi o estopim para um CONFLITO ARMADO!

Futebol causando guerra?

El Salvador e Honduras disputavam uma vaga para a Copa do Mundo de 1970 pela CONCACAF.

No entanto, a vaga para o Mundial (algo inédito até então para ambos) não era o principal motivo de apreensão nos dois países.

Vizinhos de América Central, Honduras e El Salvador viviam uma crise agrária forte, com elite latifundiária e camponeses pobres com poucas terras.

El Salvador, país territorialmente menor (do tamanho de Sergipe), “resolveu” seu problema com uma migração dos seus camponeses para o país vizinho.

Porém, Honduras também tinha graves problemas agrários, que se agravaram com os migrantes.

A luta por terra ficava cada vez mais acirrada, o que exigiu a implantação de uma Reforma Agrária por parte do governo hondurenho.

Só que a “reforma” não era bem para desocupar latifúndios improdutivos da elite (ou de empresas americanas), mas dos assentamentos dos imigrantes.

Com isso, a presidência de Honduras começou um plano de deportação dos salvadorenhos.

Obviamente isso desagradou o governo de El Salvador que, além de ver uma crise populacional ainda maior no seu país por conta do “retorno”, via manchetes da imprensa de Honduras relatando “ações criminosas” dos salvadorenhos, inflando a população contra eles.

Junto a isso, disputas territoriais de fronteira marítima e terrestre colocavam a região em cima de um barril de pólvora.

O jogo (ou melhor, o “conflito”)

Nesse clima tenso que as duas seleções nacionais se encontraram por uma vaga na Copa de 1970.

Conforme Ricardo Otero, um jornalista esportivo mexicano da Univision, não podia ter sido em momento pior.

“Havia questões políticas muito maiores […] Mas houve a coincidência dos jogos classificatórios para a Copa. Não ajudou. O futebol aqui [na América Latina] é algo muito passional – para o bem e para o mal.”

O esquema das eliminatórias era uma melhor de 2 jogos, mas não havia desempate por saldo de gols como hoje. Caso cada equipe vencesse uma partida, uma terceira seria marcada.

E foi o que aconteceu: Honduras venceu a primeira partida em casa (Tegucigalpa) por 1 x 0, no dia 8 de junho de 1969.

A seleção salvadorenha teve uma recepção que os clubes que jogam a Libertadores conhecem bem: gritos, buzinaços, tambores e rojões em frente ao hotel em que estavam hospedados, pedras sendo atiradas nas janelas dos quartos…

Não foi apenas o resultado adverso que El Salvador levou dessa partida: a salvadorenha Amelia Bolanios, 18 anos, se matou com o revólver do pai após a partida.

O suicídio da torcedora comoveu o país, com seu enterro chegando a ser transmitido ao vivo pela TV, com a presença do presidente, seus ministros e pelos jogadores da seleção salvadorenha.

E o clima ficou ainda pior no segundo jogo uma semana depois, em San Salvador, capital salvadorenha.

Os torcedores salvadorenhos foram à forra. Descontaram o tratamento dado aos jogadores salvadorenhos no hotel em Honduras, mas com requintes: atiraram ratos mortos e ovos podres.

No jogo, a seleção de Honduras teve que ser escoltado pelo Exército até o estádio.

Dentro do estádio, mais intimidação: vaias ao Hino Nacional de Honduras e um pano de chão foi hasteado no lugar da bandeira hondurenha.

Em campo, triunfo de El Salvador por 3×0, fazendo com que a vaga para a Copa de 1970 precisasse ser decidida num 3º jogo.

O “estopim” da guerra

Só que o “jogo” não havia acabado com o apito final do árbitro.

Na saída do estádio, os jogadores de Honduras precisaram ser novamente escoltados, mas até o aeroporto.

A torcida hondurenha que atravessou a fronteira para ver a partida foi massacrada pelos torcedores de El Salvador.

Duas pessoas morreram e dezenas ficaram feridas na confusão. Horas depois do jogo, a fronteira entre os dois países foi fechada.

O regulamento exigia uma terceira partida, que aconteceu na Cidade do México, no Estádio Azteca, no dia 27 de junho.

No palco onde, um pouco menos de um ano depois, comemoraríamos o nosso Tri, outro momento histórico aconteceu.

No último minuto do segundo tempo, a partida estava empatada em 2 a 2 e se encaminhava para uma prorrogação.

O jogador salvadorenho Mauricio ‘Pipo’ Rodríguez então, correu para a área do gol para receber um lançamento, desvindo para a meta e marcando, sem chances para o goleiro hondurenho Jaime Varela.

Esse era, até então, o momento mais glorioso da história do país, que se classificava pela primeira vez para uma Copa do Mundo. A declaração de Pipo, 50 anos após o fato, foi ainda de alegria pelo feito.

“Eu quase não acreditei, com tão pouco tempo restante de partida […] Tive certeza que tínhamos ganhado.”

Os jogadores sabiam que a partida tinha importância além da Copa. Só que nem desconfiavam do que aquele resultado traria para os dois países.

Enquanto os jogadores se preparavam para o jogo, El Salvador cortou laços diplomáticos com Honduras.

No dia seguinte ao jogo final, a agência de notícias UPI publicou uma notícia sobre a “‘Guerra’ do futebol vencida por El Salvador”.

Guerra do Futebol

Após a conquista salvadorenha, o clima ficou ainda pior.

Em 14 de julho, o exército de El Salvador invadiu Honduras, com aviões de guerra bombardeando o país.

Apesar de quente, não se esperava que chegasse a esse ponto. Tanto é que, no Canal do Panamá, de controle americano na época, o telegrafo não parou um segundo, para a surpresa de quem o operava:

“Eu me lembro em detalhes – ele começou a funcionar sem parar. Eu disse ‘Que diabos está acontecendo?’ Então eu fui ver o que era percebi que El Salvador tinha invadido Honduras”.

O termo “Guerra do Futebol” foi cunhado no jornal salvadorenho, mas foi “imortalizado” pelo jornalista polonês Ryszard Kapuscinsk, um dos poucos correspondentes estrangeiros na região.

No livro de memórias, publicado em 1978, ele relembra pichações que via pelas ruas hondurenhas, indicando que, para o sentimento nacional, a guerra era SIM por causa do jogo eliminatório.

“Ninguém vence Honduras”

“Nós vingaremos o 3-0”.

A OEA (Organização dos Estados Americanos) conseguiu negociar um cessar-fogo em 18 de julho, quatro dias após o início do conflito.

Apesar de rápido, foi mortal: cerca de 3 mil mortes – a maioria de civis Hondurenhos.

Sob pressão internacional, El Salvador retirou suas tropas do país vizinho no mês seguinte.

O pós-guerra

A tensão entre os países continuou após a “guerra”, mas o problema agrário que El Salvador “postergou” acabou desencadeando uma guerra civil no país entre 1979 e 1992.

Após a Copa do Mundo de 1970 (em que caiu no grupo do país da casa – o México -, a URSS e a Iugoslávia, ficando na fase de grupos), El Salvador ainda jogou a Copa de 1982, também não passando da primeira fase.

Honduras estreou em Copas do Mundo justamente acompanhando El Salvador, em 1982. Após isso, esteve nos Mundiais de 2010 e 2014, sem nunca conseguir passar de fase.

A classificação para a Copa da África do Sul, em especial, foi emblemática: classificação heroica numa vitória de 1 a 0 contra El Salvador na casa do adversário. A “vingança” que todos deveriam desejar: na bola.

 

Mas foi o futebol que disparou a guerra?

Pipo, o autor do gol mais importante da história salvadorenha, não concorda que tenha sido o estopim para a tal “Guerra”:

“Para mim, aquele gol sempre uma fonte de orgulho esportivo […] O que eu tenho certeza é que as autoridades e os políticos usaram nossa vitória no esporte para glorificar a imagem de El Salvador. […] Os estrangeiros estigmatizaram o gol como ‘o gol que começou uma guerra’ […] A guerra teria acontecido com ou sem aquele gol.”

E ele tem razão nisso. Mais uma vez, o futebol foi usado para justificar projetos unicamente de poder e conflitos que vitimam mais o povo do que apaziguam soberanias.

Fonte e Fonte.


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